LAVAGEM
A primeira edição da Oficina Ação LAVAGEM aconteceu em Salvador/BA, entre janeiro e fevereiro de 2017, com aproximadamente 40 mulheres, como parte do projeto "Loucas do Riacho" (contemplado com apoio financeiro da Secult/BA naquele ano), que incluía também o espetáculo "Loucas do Riacho" e a expografia "Miragem".
A partir dessa primeira edição, Lavagem passou a integrar as ações artístico-rituais que compõem o calendário dos festejos do Dia de Iemanjá em Salvador. Já foram realizadas seis edições - 4 edições no Rio Vermelho, no Dia de Iemanjá, 1 edição na Lagoa do Abaeté dentro do evento Virada Sustentável, em 2018 e 1 edição virtual, realizada em 2021, no contexto da pandemia do corona vírus.
LAVAGEM é um processo sensível-político, que trabalha artisticamente a transfiguração das múltiplas violências sofridas por mulheres. Através de experimentações de corpo, som e movimento, é montada uma procissão coletiva para “lavar” a memória da cidade. Essa lavagem é feita no campo simbólico, criando um espaço onde caibam, de modo mais livre, subjetividades diversas. A oficina, com duração de aproximadamente 20 horas de encontro, culmina num cortejo-oferenda, com uma pequena multidão de mulheres dançando as diversas forças que as compõem e entrelaçando suas assimetrias e consonâncias pelas ruas e praias do Rio Vermelho.
No cortejo-oferenda de “Lavagem”, cada mulher compõe o percurso com a cabeça coberta de flores. Somos ali corpos multiplicados e multiplicando outras presenças num espaço de existências cúmplices. Neste coletivo de corpos e na tensão de seus estados, na flexão de seus caminhos, na produção intermitente de conexões e diferenças, vemos emergirem novos modos de agrupamento e escuta.
A força do imaginário associado à figura de Iemanjá, única entidade de matriz africana a ter uma festa de rua exclusivamente em seu culto calendarizada como evento da cidade de Salvador, nos convoca a uma nova fundamentação dos saberes que alimentam nossa prática, recordando da necessidade inadiável de potencialização dos saberes afro-indígenas. A imagem da mãe das águas aguça em nós a memória de que uma mulher nunca está só e de que ao borrarmos os contornos que nos conformam numa identidade isolada, outras mulheres despertam em nós, nós despertamos em outras mulheres e todas despertamos no encontro das marés que nos permeiam, de modo que os desafios vividos por cada uma passam a ser responsabilidade de todas.
Compomos, em LAVAGEM, um espaço transubjetivos, favorável à abundância dos modos de ser, fazer, conhecer e criar, afirmando a arte como arte do encontro e da desestabilização dos poderes estabelecidos. A performance coletiva é tramada com base em uma intensa disposição para aproximações e para a expansão das vias através das quais afetar-nos mutuamente. O modo como o outro me afeta, as sensações e intensidades que ele desperta neste eu-corpo, as trocas sensíveis que ocorrem em nossa aproximação são considerados aqui como vias de despertar para outros estados de ser e para outros modos de criar/expressar.

A proposta de LAVAGEM é de evocação de memórias, segredos, dores, gozos, silêncios e gritos de mulheres em comunhão na intenção de "lavar", fissurar e abrir brechas nos habituais modos de existir, abrindo uma escuta sensível aos vestígios negligenciados da história "oficial" e investigando as marcas de violência que compõem tanto as mulheres quanto o espaço/cidade que elas habitam.
LAVAGEM mescla arte, ritualidade, memória, cura, ancestralidade e política. O dispositivo inicial é a articulação de um encontro feminino para a construção de um ritual artístico heterodoxo, que sonda os ecos do sagrado e da memória da cidade.
LAVAGEM compreende que a oferenda é parte do ciclo de reciprocidade que nos integra na dimensão comunal da vida e é um modo de ativar as vias de comunicação com as forças materiais e invisíveis que nos regem. Compreende também que a criação poética é um modo de oferenda e que a ativação sensível provocada pelas artes é um valor não só para seres humanos, mas também para outras espécies, seres e entidades.
LAVAGEM é transformação do espaço, através de corpo, presença, existência, som, movimento: mulheres em horda atravessando as ruas para lavar o quê? Lavar enquanto ato substantivo, gesto performativo, ritualidade, bruxaria. Lavar e transformar o espaço e a vida que acontece, para realizar a memória e ficcionalizar a presença.
LAVAGEM é limpar escadarias, pedras portuguesas, asfaltos, cimentos rachados por ervas e raízes. LAVAGEM é invocar as mortas e pô-las para dançar. LAVAGEM é alimentar os porcos para que eles não empurrem suas fomes atrozes para cima de nossas carnes. LAVAGEM é enxaguar as vísceras e desenfezar a História. LAVAGEM é encontrar-se para celebrar junto, sem negar o terror que permeia a memória. LAVAGEM é sobre mim, sobre nós, sobre nada. LAVAGEM é sob as coisas que passam, que atravessam e que permanecem.
Ficha Técnica
Idealização e Concepção: Raiça Bomfim e Olga Lamas
Coordenação e Guiança: Raiça Bomfim
Fotografias: Mariana David e Bruno Ferrúcio
Histórico
1ª Edição – Festa de Iemanjá/Rio Vermelho – 29/01 a 02/02 de 2017
2ª Edição - Festa de Iemanjá/Rio Vermelho – 29/01 a 02/02 de 2018
3ª Edição – Virada sustentável/Lagoa do Abaeté – 30/11 a 02/12 de 2018
4ª Edição - Festa de Iemanjá – 29/01 a 02/02 de 2019
5ª Edição - Festa de Iemanjá – 30/01 a 02/02 de 2020
6ª Edição – Internet (instagram e whatsapp) – diariamente, de 13/01 a 02/02 de 2021
