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Loucas
do Riacho

Uma mulher abre a boca e mostra a língua coberta por sargaços. Veste-se de musgos e flores, chafurda no funeral dos sentidos. Está completamente perdida e faz disso sua melhor saída. Abraça a desorientação, a perda, o desamparo e desliza pelas sendas do instante. Pinga suas marcas no caminho traçando um mapa úmido e volátil. Celebra a fugacidade das fórmulas e murmura que é possível parar um pouco, subir num salgueiro, despencar num riacho, deixar-se afundar cantando, morrer as mortes cotidianas, despojar-se de cansaços e embaraços, renascer. Encharca os vestidos de quem a cerca, move barbatanas no abismo, convida a saltar no vazio.

Loucas do Riacho

É dia de apresentação de “Loucas do Riacho” e, ao descermos as escadas da Casa de Castro Alves, vestidas somente com as cabeças de sargaço, nos espalhamos pelo salão ou pelo jardim que dá vistas à Baía de Todos os Santos. O público vai entrando devagar e também encontrando algum lugar para estar, alguns sentados, outros caminhando por entre as bacias espalhadas no chão, alguns de pé escorados na pilastra, outros deitando sobre o acolchoado.

 

Como o que fazemos tem um jeito de não ser “nada”, e como temos todo um tempo para estarmos onde estamos, a casa é que vai contando seus detalhes, suas paredes brancas e descascadas, seu teto alto, seus vincos e vãos, salitres, insetos, teias, zumbido das buzinas de carro lá de longe, o rádio do vizinho, os gritos das crianças. Tudo isso, mais o alaranjado intenso do pôr-do-sol na baía e as cigarras que começam a cantar em coro no entardecer, esse horário de declinar de ansiedades em que resolvemos começar. Nas bacias de alumínio, estão alguns objetos – cartas, conchas, colares de conta, pérolas falsas, penas de aves, pequenas folhas secas coloridas, alguns pedaços de tecido, vestidos, um pote de purpurina branca, um novelo de lã azul. Pendurado ao lado de um lustre antigo de lâmpadas quentes, há um vestido azul de lantejoulas que se move ao sabor do vento. Sementes de alpiste brotam lentamente de uma trama de tecido que pende no centro da sala. E nós, corpos nus, sem rosto aparente, sentamos, deitamos, levantam, ficam, ficam, ficam.

 

As coisas e as matérias sutis estão em toda parte. Entre as presenças que junto a nós sibilam, é possível vestir-se de convite – uma pele que respira - e desnudar distâncias. Estamos sempre sós e nunca estamos sós: paradoxo inexorável. Aproximar-se é reflexivo e transitivo. Estar inteiro, neste corpo de poros, fluxos e orifícios, é estar em interação. Sabemo-nos um, em nossa diferença irrevogável, e seguimos inescapavelmente misturados em outros.

 

Ao decidir celebrar essa condição, alguém pode deixar que a solidão se alastre e transborde em toques diáfanos nas multidões que o permeiam e circundam. Sentir que a dança de outros corpos alimenta o seu mover. Dançar as mãos no rastro da memória das mãos de alguém. Sentir que o silêncio, o canto, as palavras de outra gente fazem vibrar sua língua. Reconhecer, nas rachaduras da parede, os sulcos da própria epiderme. Encontrar nas árvores um modo de pausar o dia. Soltar a voz como quem solta as cordas de um balão cheio de ar, para que ela flutue até encontrar outro-pouso alheio-alhures: conviver.

 

 

As “Loucas do Riacho”, em seu riacho-nave-pântano, não precisam fazer outra coisa que não dar vazão ao que se cria naturalmente enquanto cena, cedendo ao imprevisível e maravilhoso da vida em seu jeito ao mesmo tempo sutil e furioso de passar. São muitas as presenças, cuja voz precária não precisamos traduzir, mas apenas abrir passagem para que ressoem.

 

Meu estado ali foi de quietude curiosa, pacífico ao desdobramento do tempo do rito, das ações. Um certo êxtase com a plasticidade e a beleza da ocorrência; fruição dos sons vindos de toda parte; comoção e expectativa com os transbordamentos emocionais. A meditação prosseguiu... (Orlando Pinho)[1]

 

Assim vamos ficando todos, vendo e sendo vistos, ou aproveitando para descansar os olhos. O público está ali e nós também estamos e não há o que defina quem precisa olhar para quem. Como atrizes, não precisamos mais lutar pelo foco nem nos esforçar para permanecer interessantes frente a uma plateia. Basta dar permissão ao olhar alheio, deixando-nos ver ou perder, enquanto nos despojamos das máscaras que já não vestem bem, que talvez nunca vestiram.

 

Não há uma hierarquização dos sentidos, nem um pressuposto de que o “olho no olho” é, naturalmente, um termômetro de intimidade. O olhar, esse movimento contínuo de apreensão e perda, não se define como um par de olhos que encaram os olhos de um outro sujeito, mas como uma permissão ao curso irrefreável de imagens que vão sendo encontradas, enquanto outras são perdidas. “A modalidade do visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder. Tudo está aí” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 34).

 

LOUCAS DO RIACHO pode ser entendido como um espetáculo cênico, uma performance ou uma instalação coreográfica.  O principal objetivo é diluir os contornos que pessoalizam cada corpo, que demarcam cada identidade e que objetivam a linguagem (essa linguagem que é ordem, poder e que é bem macho), para deixar emergirem, ainda que por um instante fugaz, novos modos de ser, novas gramáticas. Aqui a Ofélia louca e afogada se faz presente enquanto mote: um corpo de mulher (e o que é um corpo de mulher? Quais os borrões possíveis nele?) cuja linguagem transborda em loucura e cuja matéria se dilui nas águas. Ao passo que o devir Ofélia vai ganhando lastro, as vozes das águas vão transfigurando Ofélia no rio em que ela afunda. A metaforização se esvanece, uma vez que a criação deixa de articular significados diferentes através de um mesmo signo - Ofélia - e passa a ser uma espécie de meditação pelas águas, uma reconciliação com a matéria, um refestelamento na substância. “Essas imagens da matéria, nós a sonhamos substancialmente, intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as vãs imagens, o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração” (BACHELARD, 2013, p. 2).

 

Um rio transcorrendo através de sete corpos em cena, convocando o público para encontros, trocas e abertura de sensibilidade: este é o espetáculo Loucas do Riacho: um rio que infiltra dúvidas na rigidez dos conceitos, que atiça movimentos ao que é estanque, que rasura a nitidez das formas para revelar seu estado de metamorfose e trânsito. “É pela água que Poe, o idealista, Poe, o intelectual e o lógico, retoma contato com a matéria irracional, com a matéria “atormentada”, com a matéria misteriosamente viva” (BACHELARD, 2013, p. 13)

 

Através dos corpos nus das performers, das plantas, pedras e demais existências que cortam o espaço, é que abre espaço em que o rio transcorre. Abrir o corpo para estar o rio. Infiltração, umidade, transbordamento. Fluidificação de si. Alagar as divisas entre. Dia e noite, memória e presente, fantasmas e corpos. Silêncio e grito. Uma voz alagada de línguas e lamas.

 

LOUCAS DO RIACHO se abre como espaço onde se possa dançar a liberdade do gesto. As loucas são captadoras de presença de água no ermo, como radioestesistas sensíveis a radiação de lençóis subterrâneos. Na cidade onde muitos rios viraram vestígio ou esgoto, sobe água doce em fontes, dique, parque, no ar ondulando, chuvas, hidrantes, no corpo da cidadã, todas águas, nessa mesma cidade, certa hora confluem e encontram o mar. 

 

[1] Trecho de entrevista realizada por email, em 27/07/2017, com o poeta baiano Orlando Pinho. Orlando assistiu “Loucas do Riacho” e “Ofélia: sete saltos para se afogar”. Esta foi a resposta dele para a pergunta “Você tem algo mais a dizer sobre suas sensações naquele dia? Assistir Loucas do Riacho move algum tipo de desejo criativo em você?”.

Histórico

2018 Temporada independente na Casa Cronópios, em Salvador/BA.

2017 Estreia e temporada na Casa de Castro Alves, em Salvador/BA, com apoio financeiro do Governo do Estado, através do Edital Setorial de Teatro 2016 da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Fundo de Cultura, Secretaria da Fazenda e Secretaria de Cultura da Bahia.

MIRAGEM

o tempo que vira água e enlouquece a tarde

MIRAGEM é um inventário dos resquícios, sobras, desabamentos e imagens do projeto LOUCAS DO RIACHO, que envolveu 3 etapas: a performance-oferenda LAVAGEM, o espetáculo LOUCAS DO RIACHO e esta exposição. O projeto integra um outro maior, o PROJETO OFÉLIA, cujas ações evocam uma atitude artística e filosófica de experimento, que transfigura a imagem da Ofélia, de Shakespeare, traçando pontes criativas entre loucura, mulher e água.

Há, nesse chão, nessas paredes, nesses cômodos, nessas passagens, uma série de revoluções em curso. Contam isto os ruídos de vento, vermes, correntezas de linfas, goteiras, respirações, transpirações, linguagens, mexerico de micróbios e rastejamentos minúsculos. Em cada canto do lugar que estamos, existem bolsões por onde o passado e o porvir se revolvem e revelam que toda a vida é agora. “O passado é um rastro de coisas que o presente vomita, como as chamas de um foguete” (HAOULI, 2002, p 61). Entre a matéria de nosso corpo e dos corpos que nos rondam, há mais vias que barreiras, e por elas, podemos viver, hora após hora, a estranheza de sermos outros. Porque, assim, entre vida e arte, somos o que fica em si - matéria densa - mas muito mais o que escorre e se mistura - energia, descamação e fluido.

Ficha Técnica Loucas do Riacho e Miragem

Direção e idealização: Raiça Bomfim

Performance e criação: Camilla Sarno, Felipe Benevides, Liz Novais,

Mônica Santana, Olga Lamas, Raiça Bomfim e Uerla Cardoso

Cenografia, figurino e adereços: Fábio Pinheiro

Direção musical e sonoplastia: André Oliveira 

Iluminação: Márcio Nonato

Expografia e fotografias: Mariana David

Coordenação de Produção: Olga Lamas

Produção Executiva: Júnior Oliveira

Assessoria de Imprensa: Crioula - Comunicação e Mobilização social

Vídeo: Daniel Guerra

Desenhos e colagens: Lucas Moreira

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