Ofélia
Ao reencontrar Ofélia, numa releitura de Hamlet, de William Shakespeare, no ano de 2011, sou tomada por um assombro. Sinto operar-se em mim uma mudança de perspectiva diante da qual a personagem afogada passa a animar o desejo incontornável de viver. No potencial simbólico de seu suicídio e na força mitológica e arquetípica de seu destino, encontro não uma pulsão de morte, mas seu contrário. Ao lançar-se no rio, Ofélia convida a despojar-me das opacidades que mortificam o estar no mundo e a tirar dos ombros todo peso morto, para lançar-me na trágica experiência de renascer a cada ato. Revejo-me como aquela que vinha trilhando um percurso perfeitamente palatável e bem-educado e, por uma concatenação de fatos, aceita a trágica condição de se perder e deixa-se transbordar em vibrações alucinadas e atordoantes, lançando-se em deriva por um rio insondável.
Desse encontro com Ofélia e de seu impacto nas inquietações criativas que me movem enquanto artista nasce esta pesquisa. No “Projeto Ofélia”, território de práticas acabou transbordando em minha pesquisa de mestrado (de onde tomo emprestado este texto), reúno uma série de experimentações sobre Ofélia que foi tecendo ao longo de sete anos. Ele abrange o espetáculo-solo “OFÉLIA: sete saltos para se afogar” (2015), o primeiro e o segundo “Estudos para Ofélia Blue” (2012 e 2014), a performance “Cidade Afogada”, os livros “Maré Cavala” (que acabou transbordando um pouco a linha do projeto e transvasando em outros movimentos poéticos – pode ser encontrado nesta seção) e “Sete Saltos” (que pode ser encontrado nesta seção), uma série de fotografias e pequenos vídeos, além de outros desdobramentos pontuais. Abrange, em especial, o espetáculo “Loucas do Riacho” (que pode ser encontrado nesta seção), criado ao longo do mestrado e de onde transborda essa poética tecida no convívio com as águas, plantas e pedras cujo lastro segue me movendo.
Criar: é disso que trata este encontro com Ofélia. O riacho em que Ofélia se dilui corre e me atravessa numa dança de avanço e abandono. Mas ele não transcorre num espaço puramente movediço e insondável. O rio, em seu trajeto de intensidades, correntezas e substâncias, marca as linhas deste mapa, apontando justamente para modos fluidos de produzir-nos. E forma pequenas ilhas nas quais é possível parar um pouco, contemplar a paisagem e sentir a firmeza das intenções desta jornada.

OFÉLIA: sete saltos para se afogar
É um espetáculo solo de Raiça Bomfim, tecido numa escritura autoral inspirada pelos signos, crises e metáforas abarcados na figura da Ofélia louca e afogada. Sua dramaturgia é criada a partir da imaginação sobre os níveis de submersão de Ofélia nas águas, e traça um percurso que começa a partir do ponto em que ela é arrastada para dentro do rio, para, daí se lançar em movimentos, delírios e sensações debaixo d’água, em zonas a cada vez mais abissais. Ofélia aparece em sua solidão, acompanhada pela presença fantasmagórica do público, junto ao qual atravessa densidades diversas. No final, Ofélia retorna, por Empuxo, à superfície e esse retorno é também uma volta a uma infância, um estado de graça, de brincadeira, de palhaçada e a partir do qual ela começa a aprender a nadar.
Ficha Técnica
Realização: Gameleira Artes Integradas
Criação e performance: Raiça Bomfim
Dramaturgia: Raiça Bomfim
Direção Musical: Heitor Dantas
Direção musical primeiras temporadas : André Oliveira
Preparação corporal: Felipe Benevides
Cenário: Erick Saboya
Iluminação: Ana Antar
Figurino: Raiça Bomfim
Arte gráfica: Lucas Moreira
Vídeos de divulgação: Daniel Guerra
Fotografias: Carol Garcia, Ditto Leite, Diney Araújo, Sol Tereza Santos
Histórico
Indicação de Raiça à categoria “Revelação”, do Prêmio Braskem de Teatro 2015, pela direção e atuação no espetáculo.
2018 2 Apresentações na Bienal Internacional de Teatro do Ceará, no Teatro José de Alencar, Fortaleza e no Sesc Juazeiro do Norte.
2017 Apresentação no Festival Maré de Março, em Salvador.
2015 2 Apresentações no FIAC - Festival de Artes Cênicas da Bahia.
2015 2 Apresentações na plataforma artística CENA, SOM e FÚRIA, com curadoria da Dimenti Produções Culturais.
2015 Temporada no Espaço Xisto Bahia, em Salvador/BA.
2015 Estreia e curta temporada na Casa de Castro Alves, em Salvador/BA .







A Ofélia comportada, dócil e obediente do início da trama do clássico de Shakespeare fustiga-me contra toda aceitação passiva e inquestionada diante de regras, modos, conceitos, métodos e leis normatizadas em seus campos específicos. Sua loucura, despontada após a perda do pai e o afastamento intempestivo de seu amante, Hamlet, deflagra aqui uma voz profunda que só encontra vias de expressão a partir dos ocos abertos pelo desamparo, pela perda e pelo apagamento de referenciais rígidos e engessados.
O “to be or not to be” expressa-se enquanto política de ser-estar no corpo-eu-Ofélia. Há um gesto, uma palavra, um ruído, uma circunstância em que estou e que me excede em devir. Encontro espaços de passagem por entre as frestas dos tantos papéis articulados neste percurso. Enlouqueço, me afogo e no ímpeto desbaratado de sair de mim para me ver refletida em outrem, alastro a necessidade fulminante de traduzir uma intimidade que irrompe no espaço. Apresento-me ao avesso, deixando que meus escombros mais íntimos se materializem em pequenos sinais, gestos, texturas, movimentos, sons que são eu e, ao mesmo tempo, me desmontam.